14 maio 2007

CÁLIDAS REMINISCÊNCIAS HIBERNAIS

Quem reclama do bairrismo dos gaúchos nunca provou um espinhaço de ovelha se desmanchando na panela de ferro, comido com aipim bem novinho. Ou então, pinhões assados na chapa do fogão a lenha. Colocam-se na chapa dois ou três pinhões de cada vez, virando de vez em quando pra não queimar. Ou ainda, um ensopado de aipim (que os não-gaúchos insistem em chamar de "vaca atolada", o que já tira metade do sabor), que deve ficar uma manhã inteira cozinhando, até que a carne de peito de boi fique bem macia e o aipim vire um caldo grosso, borbulhando enquanto a grande panela chacoalha sobre o fogão a lenha.

Ah, o fogão a lenha... Nele reside boa parte do bairrismo gaúcho - o meu, pelo menos. Acender o fogo é um verdadeiro ritual. Começa-se tirando a gaveta das cinzas para esvaziá-la nos fundos do pátio, num montinho que vai crescendo até que a cinza seja usada para adubar a horta. Depois, abre-se a portinha do fogão para colocar lá, de cantinho, o "guarda-fogo", uma acha de lenha mais grossa e densa, que pode ser de eucalipto, acácia, maricá, anjico ou outro tipo de madeira dura, desde que o IBAMA não esteja por perto. Ao lado do guarda-fogo deve ser colocada uma maçaroca de papel (que, quando possível, deve ser substituída por palha de milho ou cartuchos de taquara) sobre a qual põem-se os gravetos, bem fininhos. Acende-se o fogo e, à medida que os gravetos começam a queimar, deve-se ir colocando lenha paulatinamente mais grossa. O passo seguinte é botar sobre o fogão uma ou duas chaleiras d'água pra esquentar. É simplesmente um pecado mortal acender o fogão a lenha e não botar a chaleira pra esquentar. Depois que a água esquenta, é só cevar o mate e sentar-se ao pé do fogo enquanto o minuano sopra lá fora, impiedoso. O fogão a lenha é ao mesmo tempo uma fonte de aquecimento, um auxiliar no preparo da comida e o ponto de encontro de toda a família. O crepitar do fogo e o chiado da chaleira são trilhas sonoras marcantes da minha infância.

O inverno gaúcho é uma estação de delícias. Além dos quitutes já citados, não podemos esquecer a maravilha das sopas de todos os tipos, apreciadas quentinhas, com grossas fatias de pão e noz-moscada ralada. E o carreteiro? Outro manjar dos deuses, que pode ser preparado com charque, com lingüiça ou com carne - e até com restos do churrasco de domingo. Naquelas tardes de chuva, bolinhos fritos embebidos em melado. Nas noites mais frias, um panelaço de quentão, bebido na xícara. Que coisa linda é o inverno gaúcho...

Essas quentes recordações do nosso belo inverno vão esfriando cada vez mais na minha memória. Primeiro, porque não moro mais no interior de São Sebastião do Caí e sim em Porto Alegre - onde nunca vi um fogão a lenha.

Além disso, a rotina frenética do dia-a-dia impede-nos de sentar ao pé do fogo para chimarrear ouvindo o chiado baixinho da chaleira. Vivemos com pressa, nunca em casa, sempre atrasados.

E a comida? Além da Dona Olmira, minha querida avó quituteira, quem mais tem tempo para esperar três horas pelo cozimento de um ensopado de aipim? Em tempos de microondas, ninguém visita a cozinha por mais de cinco minutos seguidos.

Por fim, outro motivo para o arrefecimento das minhas melhores lembranças quentinhas de inverno é que... nós simplesmente não temos mais inverno! Pra mim, que não morro de amores pelo verão, um dos orgulhos de ser gaúcho era poder dizer que aqui nós tínhamos inverno de verdade, quando chegava aquele frio de renguear cusco e congelar a água do tanque. Eu ia a pé para a escola, todos os dias, e via os campos da Dona Cenilda branquinhos de geada, enquanto o nariz doía de frio. Há quanto tempo não temos mais invernos assim? Será que o aquecimento global vai nos tirar até o nosso inverno, essa faceta tão marcante e poética da nossa cultura? Será que não vou mais poder (depois de aposentado, que seja) sentar ao lado do fogão a lenha e ver os pinhões assando na chapa? Nunca mais encherei a xícara de quentão com a concha, pra sentir aquele calor gostoso descer pelo meu esôfago? E o aroma do ensopado de aipim cozinhando beeeeem devagar, vai ficar só na memória?

Se a loucura suicida do aquecimento global nos privar de todas essas coisas que me fazem amar ser gaúcho, só vejo uma saída no horizonte: emigrar pra Patagônia.

4 comentários:

Daniel Pearl Bezerra disse...

Você só lê jornalismo independente no DESABAFO PAÍS, que vem trazendo A VERDADEIRA HISTÓRIA DA REDE GLOBO: "As razões que levaram Simon Hartog a produzir o documentário sobre os bastidores da Globo - e, por tabela, de outras emissoras brasileiras de grande porte, como o SBT – não são totalmente claras. Porém, tendo ou não os europeus segundas intenções, o mérito do registro não é comprometido, visto que ele traz à tona uma série de questionamentos éticos que parecem esquecidos pela mídia brasileira há muito tempo. Não é a toa que na última pesquisa da organização Repórteres Sem Fronteiras, o Brasil ficou 71º no ranking das nações com maior liberdade de imprensa." O Desabafo publica 10 vídeos sobre a Rede Globo. É imperdível. Acesse: http://desabafopais.blogspot.com

Felipe Martini disse...

A idéia de ir pra Patagônia é minha!

=]

Anônimo disse...

nossa!!! mtu legal teu texto!!! eu q amo inverno e q passava minhas férias sempre no interior, na beira do fogão a lenha, me senti igualmente afetada!!! pinhão, quentão e o nariz congelando!!! realmente sensacional!!!

Anônimo disse...

Bem... Eu gosto do inverno por ser meu aniversário, mas sempre me questionei se o perderemos desde que começou a esquentar mais do que esfriar... Tens lembranças de dar inveja... Não fiz quase nada disso :/