22 setembro 2007

CERTAS DISTOPIAS

Querem que eu cite dois caras que sabiam o que escreviam? Aldous Huxley e George Orwell. São eles os autores das melhores distopias literárias que conhecemos: respectivamente, Admirável Mundo Novo e 1984.

Para poupar o leitor de uma consulta ao dicionário, posso dizer que “distopia” é a descrição pessimista de uma sociedade inexistente ou mesmo existente, uma sociedade na qual a gente não quer viver, mais ou menos como a criada por George Miller em Mad Max. O termo surgiu como contraposição a “Utopia”, título da famosa obra de Thomas Morus, em que o nosso bom santo (ele foi canonizado) fala de uma sociedade perfeita situada em uma ilha imaginária. Pensando bem, acho mais seguro consultar o dicionário assim mesmo.

Voltando às nossas distopias, é possível estabelecermos algumas relações entre elas.

1984 (Nineteen Eighty-Four) foi escrito por Orwell em 1948 (sugestivo, não?) e trata da divisão do mundo em três grandes estados totalitários: Oceania, Eurásia e Lestásia, que estão em permanente guerra uns contra os outros. Huxley lançou Admirável Mundo Novo (Brave New World) em 1932 (!), tratando de um mundo dominado por um único estado: o Estado Mundial. Ambos os autores procuraram, mais que prever o futuro, descrever e hiperbolizar as tendências de organização social já existentes no seu tempo: Orwell criticando os fascismos de esquerda e de direita, Huxley denunciando os malefícios da adoção do fordismo como filosofia de vida.

A história de 1984 se passa na Oceania, dividida em três classes sociais: os membros do Partido Interno, os membros do Partido Externo e os Proles (a choldra ignóbil). É uma ditadura, do pior tipo. A força (física) é a ferramenta de controle do Estado, personificado pela figura do onipresente Big Brother, o grande líder, que aparece em toda parte, em cartazes que dizem: “Big Brother Is Watching You”. Sim, as pessoas são constantemente observadas, dentro de suas próprias casas, pela teletela: uma espécie de TV que transmite imagens ao mesmo tempo em que filma e escuta tudo que acontece ao seu redor. Além disso, os filhos são estimulados pelo governo a delatar os deslizes dos pais. A união familiar é desencorajada, assim como o sexo. Só o Big Brother pode ser amado. Por sinal, o nome do órgão de repressão à oposição é Ministério do Amor. Para lá são levados os dissidentes presos pela Polícia do Pensamento, e lá eles passam por uma série de torturas físicas e psicológicas, até se transformarem por completo. O governo altera constantemente o passado a seu favor, através da manipulação da mídia, e ousa criar uma língua, a Novilíngua, feita para restringir a capacidade de reflexão das pessoas. O herói da obra, como não poderia deixar de ser, é o Indivíduo, representado por dois membros do Partido Externo, Winston e Julia, que ousam amar um ao outro.

O enredo de Admirável Mundo Novo (AMN) situa a ação em um futuro mais distante, dominado pelo Estado Mundial, quando Ford é adorado como um deus (literalmente) e as pessoas não nascem mais do ventre materno, e sim de linhas de montagem em que são manipuladas e condicionadas para se ajustarem fisicamente à classe social a que pertencerão: elas podem ser Alfa, Beta, Gama ou Ípsilon. Depois de tirados dos úteros artificiais, os bebês são levados para escolas estatais onde o condicionamento terá continuidade. Lá, por meio de técnicas pavlovianas (nessas horas, a Wikipedia é uma mãe, leitor... pergunte a ela quem foi Pavlov), elas são preparadas para reagir aos mais variados estímulos de acordo com o requerido de cada classe social: os Alfas terão menos condicionamentos, pois deles se espera a capacidade de liderança (limitada, é claro); os Ípsilons Semi-Aleijões serão muito condicionados, pois foram feitos para trabalhar muito e pensar muito pouco. Dois pontos comuns no treinamento de todas as classes são a preparação para o consumo, cerne da sociedade fordista, e para a felicidade: todos se sentem felizes do jeito que são. E quando bate a depressão, basta tomar um comprimido de soma, a droga do bem-estar, distribuída pelo governo. O herói da história, Bernard Marx (outro nomezinho sugestivo) é um Alfa Mais que, segundo rumores, recebeu álcool demais no processo de gestação e, por isso, tinha um corpo que não se encaixava nos ideais de beleza da sua classe, razão da sua insatisfação frente ao seu estar-no-mundo.


Talvez a grande vantagem de AMN sobre 1984, em termos de sucesso na realização da "profecia" seja o fato de a ditadura de Huxley ser muito mais sutil e eficiente que a Orwell no que diz respeito à manutenção do status quo. Se na Oceania o carrasco O'Brien diz a Winston que a imagem do futuro é uma bota esmagando um rosto humano indefinidamente, no Estado Mundial todos se sentem realizados e satisfeitos com a própria vida, graças aos condicionamentos. Se em 1984 o governo desencoraja o sexo para evitar o amor, em AMN os administradores estimulam o sexo inconseqüente, pelos mesmos motivos. Se no livro de Orwell o motor econômico e social é o Estado militarizado em permanente guerra contra um dos vizinhos, a obra de Huxley apresenta a busca individual de satisfação e prazer como via de obtenção da estabilidade social e da prosperidade do Estado. Huxley é que foi um profeta: já em 1932 ele "previu" a Globalização, a progressiva precocidade sexual, a vitória dos desejos do indivíduo sobre a devoção ao Estado (e isso numa época em que o sucesso do Fascismo apontava na direção inversa).

A principal vantagem do livro de Orwell sobre o de Huxley está no prazer que proporciona ao leitor, pelo menos na opinião deste colunista. A história de 1984 é cada vez mais instigante e prazerosa na medida em que as páginas vão sendo viradas, enquanto AMN está dividido em duas partes: a primeira metade, magnífica, estupendamente fantástica, onde o autor descreve a sociedade que concebeu; e a segunda metade, mais enfadonha e arrastada que uma novela mexicana, onde um "selvagem" descoberto por Bernard fica citando Shakespeare e se perguntando se deve ou não traçar a gostosa da história, que está interessada apenas no corpo dele e não no seu coraçãozinho inquieto.

Em todo caso, quem ainda não leu esses dois livros está proibido de voltar a acessar este blogue, enquanto não o fizer.

08 setembro 2007

TIO E SOBRINHA

Domingo de chuva, lá estou eu entrando no Zaffari para usufruir das minhas prerrogativas de participante da sociedade de consumo. Ao passar pela porta, ouço uma vozinha que diz:

- Tio, pode comprar alguma coisa pra mim?

Paro e me viro para ver o que minhas retinas tão fatigadas não tinham visto antes, ou, reformulando, o que minhas retinas tão fatigadas tinham visto e decidido ignorar: do lado de fora, uma guriazinha magra e miúda, com a cabeça coberta por um saco plástico para se proteger da chuva. Dou as costas para a minha recém-descoberta sobrinha e entro no templo do consumo. Compro o que tenho que comprar e depois procuro algo para dar pra ela. Tenho geralmente várias desculpas prontas para me recusar a dar esmolas, como "Não se deve dar o peixe, mas ensinar a pescar", "Se eu der, ela ficará dependente", "Ajudar uma só pessoa não vai resolver os problemas do mundo", etc, mas como negar um pouco de comida a uma menininha molhada num dia de frio e chuva?

Penso em comprar pra ela um pacote de Trakinas, mas talvez entupi-la de gordura trans não seja a melhor maneira de combater a sua fome. "Essa menina precisa de proteína", penso eu, que além de sociólogo de bodega virei nutricionista de bodega, e vou ao balcão de comidas prontas lá no fundo. Compro dois espetinhos suculentos e apetitosos, que são embalados numa daquelas bandejinhas de isopor, envoltos em um filme de PVC. Ao sair do supermercado, entrego pra ela os espetinhos e digo:

- E depois de comer, joga o saquinho na lixeira, tá?

Ela faz que sim com a cabeça, eu dou as costas e me vou, pensando que ela certamente vai jogar a embalagem no chão. Depois de atravessar a rua, viro a cabeça para ver o que ela fez e... ela não está comendo, mas guardando a comida em uma sacola, para depois continuar de pé ao lado da porta. Certamente esperando que outro tio lhe dê mais. Certamente guardando para levar para casa, para uma família que a espera ávida por doações dos tios que a sustentam.

É triste viver num país em que muitos e muitos sobrinhos vivem da caridade de tios que sequer sabem os seus nomes. É triste que tantas pessoas precisem de tios para suprir as suas necessidades mais fundamentais. É triste que essa tarefa tenha sido jogada nos ombros dos tios. Eu, com minha concepção pequeno-burguesa de que cada um deveria ter um pai e uma mãe de verdade, pouco ou nada faço para melhorar a vida dos meus muitos sobrinhos espalhados por aí.

Qual será o futuro da minha sobrinha anônima? Terá ela um dia os seus próprios filhos? Ficarão eles nas portas dos supermercados, pedindo comida aos tios que entram? E eu? Que farei para ajudar os meus sobrinhos? Passarei a vida escrevendo textinhos inócuos para sites de meia dúzia de visitantes? Jogarei migalhas às menininhas nos domingos chuvosos? Votarei em candidatos idealistas que depois se revelarão iguais ao resto da escumalha? Cairei na tentação de usar as mazelas humanas como matéria-prima para crônicas que servirão unicamente para nutrir a minha vaidade?

(...)

O Drummond que me perdoe pelo plágio. Mas eta vida besta, meu Deus.