25 dezembro 2007

Este colunista mudou-se para o seguinte endereço:

http://operiscopio.wordpress.com

E aguarda a sua visita.

19 novembro 2007

PEDINTES E PEDINTES



Quem costuma andar pelas ruas das grandes cidades com certeza já foi abordado por uma figura praticamente onipresente nas urbes brasileiras: o pedinte. O que talvez nem todos tenham reparado é que existem vários tipos de pedinte, que podemos reconhecer facilmente se observarmos as suas técnicas de abordagem.

O mais comum é, sem dúvida, o pedinte-numismático, assim denominado devido à sua estranha fixação por moedas. Costuma ficar nas portas dos supermercados, para abordar os consumidores que saem e lhes perguntar: "Tio, sobrou uma moedinha?"

No mesmo local (as portas dos supermercados), aglomeram-se os membros de outra classe de pedinte: o pedinte-gourmet, imediatamente identificado porque sempre pede que lhe comprem algo para comer.

Longe dali, nas cercanias das estações rodoviárias, encontramos um tipo sem dúvida emblemático: o pedinte-peregrino, que está sempre querendo viajar para alguma cidade distante. Um dia ele vem e nos diz que é de São Borja, foi assaltado e precisa de ajuda para comprar uma passagem de volta. Algum tempo depois, a mesma criatura nos aborda e pede dinheiro para comprar uma passagem de volta... para Dom Pedrito! E assim sucessivamente.

Um pedinte cada vez mais comum é o pedinte-chantagista, que sempre tenta nos coagir dizendo que poderia estar roubando, mas prefere pedir.

O pedinte-patriarca, outro tipo clássico, tem doze filhos para sustentar, está desempregado e precisa de uns trocados pro leite, mas geralmente reclama quando lhe damos uma caixa de leite ao invés dos trocados.

Já o pedinte-hipocondríaco, como não poderia deixar de ser, pede-nos auxílio para comprar remédios. Via de regra, remédios caríssimos para moléstias extremamente raras.

E a última moda em termos de esmolagem é o pedinte-mascate, que nos enche o saco em bares e praças para vender as suas bugigangas cheias de luzinhas, suas balas de goma ou seus cartõezinhos com poemas ruins, sempre pelo preço tabelado de "um real ou um vale-transporte". A categoria tem plano de carreira e é a que mais cresce em tempos de Capitalismo Selvagem.

É de suma importância, para o transeunte moderno, conhecer bem e identificar todos os tipos de pedinte, para que sempre possa adotar a evasiva mais adequada para cada situação.

31 outubro 2007

GRAÇAS À COPA...

E a Copa do Mundo, para surpresa geral, será no Brasil, que venceu a concorrência contra... bem, o Brasil era candidato único, a não ser que consideremos como rival a desconfiança do mundo quanto à nossa capacidade de organizar com êxito um evento de tal magnitude.

Estavam todos lá, os melhores e mais representativos espécimes da Terra brasilis: o presidente-operário (que não trabalha há mais de trinta anos), o atacante que fez mil gols (incluindo os marcados nas peladas de futebol de praia), o imortal que entrou pra Academia de Letras sem saber escrever, além de ministros, governadores e pederastas de menor brilho. Todos comemoraram a gloriosa vitória na eleição em que éramos o único candidato. Todos, inclusive o Pelé, que não foi convidado para acompanhar a delegação brasileira (para consternação de Michel Platini) mas estava pertinho de Zurique, representando um fabricante de gramados artificiais (!) em outro evento.

A Copa do Mundo, a julgar pelo que se diz na mídia, salvará o Brasil. Graças à Copa teremos metrô, graças à Copa reformaremos os estádios (não temos nenhum - repito: NENHUM em condições de sediar jogos "copais"), graças à Copa nossos hotéis treinarão os atendentes para falar com os hóspedes em inglês, graças à Copa nossas estradas serão consertadas, graças à Copa os vôos sairão no horário, graças à Copa o lixo que se acumula nas calçadas será recolhido, graças à Copa tudo vai ser lindo e maravilhoso.

Temos apenas sete anos para transformar essa república de bananas num paraíso. O tempo e a grana serão suficientes - pelo menos, é o que dizem Lula e Ricardo Teixeira. Perguntar não ofende: se é possível realizar no nosso altaneiro torrão tantas melhorias em tão curto espaço de tempo, por que o presidente Lula, que está com a faixa desde 2003, esperou até agora para decidir fazê-las? É preciso uma Copa do Mundo para termos infra-estrutura de qualidade? Quem disse?

Seja o que for, Lula finalmente encontrou aquilo que tanto procurava: um mirabolante projeto de união nacional capaz de guindá-lo à posição de Grande Timoneiro.

E os corruptos receberam dos deuses (ou dos demônios) um presentaço: sete anos de sossego para roubar em paz enquanto a opinião pública estiver entretida com a preparação para o evento. Sem contar as grandes oportunidades de negócios escusos propiciadas pela infinidade de licitações e contratos que vêm aí.

22 setembro 2007

CERTAS DISTOPIAS

Querem que eu cite dois caras que sabiam o que escreviam? Aldous Huxley e George Orwell. São eles os autores das melhores distopias literárias que conhecemos: respectivamente, Admirável Mundo Novo e 1984.

Para poupar o leitor de uma consulta ao dicionário, posso dizer que “distopia” é a descrição pessimista de uma sociedade inexistente ou mesmo existente, uma sociedade na qual a gente não quer viver, mais ou menos como a criada por George Miller em Mad Max. O termo surgiu como contraposição a “Utopia”, título da famosa obra de Thomas Morus, em que o nosso bom santo (ele foi canonizado) fala de uma sociedade perfeita situada em uma ilha imaginária. Pensando bem, acho mais seguro consultar o dicionário assim mesmo.

Voltando às nossas distopias, é possível estabelecermos algumas relações entre elas.

1984 (Nineteen Eighty-Four) foi escrito por Orwell em 1948 (sugestivo, não?) e trata da divisão do mundo em três grandes estados totalitários: Oceania, Eurásia e Lestásia, que estão em permanente guerra uns contra os outros. Huxley lançou Admirável Mundo Novo (Brave New World) em 1932 (!), tratando de um mundo dominado por um único estado: o Estado Mundial. Ambos os autores procuraram, mais que prever o futuro, descrever e hiperbolizar as tendências de organização social já existentes no seu tempo: Orwell criticando os fascismos de esquerda e de direita, Huxley denunciando os malefícios da adoção do fordismo como filosofia de vida.

A história de 1984 se passa na Oceania, dividida em três classes sociais: os membros do Partido Interno, os membros do Partido Externo e os Proles (a choldra ignóbil). É uma ditadura, do pior tipo. A força (física) é a ferramenta de controle do Estado, personificado pela figura do onipresente Big Brother, o grande líder, que aparece em toda parte, em cartazes que dizem: “Big Brother Is Watching You”. Sim, as pessoas são constantemente observadas, dentro de suas próprias casas, pela teletela: uma espécie de TV que transmite imagens ao mesmo tempo em que filma e escuta tudo que acontece ao seu redor. Além disso, os filhos são estimulados pelo governo a delatar os deslizes dos pais. A união familiar é desencorajada, assim como o sexo. Só o Big Brother pode ser amado. Por sinal, o nome do órgão de repressão à oposição é Ministério do Amor. Para lá são levados os dissidentes presos pela Polícia do Pensamento, e lá eles passam por uma série de torturas físicas e psicológicas, até se transformarem por completo. O governo altera constantemente o passado a seu favor, através da manipulação da mídia, e ousa criar uma língua, a Novilíngua, feita para restringir a capacidade de reflexão das pessoas. O herói da obra, como não poderia deixar de ser, é o Indivíduo, representado por dois membros do Partido Externo, Winston e Julia, que ousam amar um ao outro.

O enredo de Admirável Mundo Novo (AMN) situa a ação em um futuro mais distante, dominado pelo Estado Mundial, quando Ford é adorado como um deus (literalmente) e as pessoas não nascem mais do ventre materno, e sim de linhas de montagem em que são manipuladas e condicionadas para se ajustarem fisicamente à classe social a que pertencerão: elas podem ser Alfa, Beta, Gama ou Ípsilon. Depois de tirados dos úteros artificiais, os bebês são levados para escolas estatais onde o condicionamento terá continuidade. Lá, por meio de técnicas pavlovianas (nessas horas, a Wikipedia é uma mãe, leitor... pergunte a ela quem foi Pavlov), elas são preparadas para reagir aos mais variados estímulos de acordo com o requerido de cada classe social: os Alfas terão menos condicionamentos, pois deles se espera a capacidade de liderança (limitada, é claro); os Ípsilons Semi-Aleijões serão muito condicionados, pois foram feitos para trabalhar muito e pensar muito pouco. Dois pontos comuns no treinamento de todas as classes são a preparação para o consumo, cerne da sociedade fordista, e para a felicidade: todos se sentem felizes do jeito que são. E quando bate a depressão, basta tomar um comprimido de soma, a droga do bem-estar, distribuída pelo governo. O herói da história, Bernard Marx (outro nomezinho sugestivo) é um Alfa Mais que, segundo rumores, recebeu álcool demais no processo de gestação e, por isso, tinha um corpo que não se encaixava nos ideais de beleza da sua classe, razão da sua insatisfação frente ao seu estar-no-mundo.


Talvez a grande vantagem de AMN sobre 1984, em termos de sucesso na realização da "profecia" seja o fato de a ditadura de Huxley ser muito mais sutil e eficiente que a Orwell no que diz respeito à manutenção do status quo. Se na Oceania o carrasco O'Brien diz a Winston que a imagem do futuro é uma bota esmagando um rosto humano indefinidamente, no Estado Mundial todos se sentem realizados e satisfeitos com a própria vida, graças aos condicionamentos. Se em 1984 o governo desencoraja o sexo para evitar o amor, em AMN os administradores estimulam o sexo inconseqüente, pelos mesmos motivos. Se no livro de Orwell o motor econômico e social é o Estado militarizado em permanente guerra contra um dos vizinhos, a obra de Huxley apresenta a busca individual de satisfação e prazer como via de obtenção da estabilidade social e da prosperidade do Estado. Huxley é que foi um profeta: já em 1932 ele "previu" a Globalização, a progressiva precocidade sexual, a vitória dos desejos do indivíduo sobre a devoção ao Estado (e isso numa época em que o sucesso do Fascismo apontava na direção inversa).

A principal vantagem do livro de Orwell sobre o de Huxley está no prazer que proporciona ao leitor, pelo menos na opinião deste colunista. A história de 1984 é cada vez mais instigante e prazerosa na medida em que as páginas vão sendo viradas, enquanto AMN está dividido em duas partes: a primeira metade, magnífica, estupendamente fantástica, onde o autor descreve a sociedade que concebeu; e a segunda metade, mais enfadonha e arrastada que uma novela mexicana, onde um "selvagem" descoberto por Bernard fica citando Shakespeare e se perguntando se deve ou não traçar a gostosa da história, que está interessada apenas no corpo dele e não no seu coraçãozinho inquieto.

Em todo caso, quem ainda não leu esses dois livros está proibido de voltar a acessar este blogue, enquanto não o fizer.

08 setembro 2007

TIO E SOBRINHA

Domingo de chuva, lá estou eu entrando no Zaffari para usufruir das minhas prerrogativas de participante da sociedade de consumo. Ao passar pela porta, ouço uma vozinha que diz:

- Tio, pode comprar alguma coisa pra mim?

Paro e me viro para ver o que minhas retinas tão fatigadas não tinham visto antes, ou, reformulando, o que minhas retinas tão fatigadas tinham visto e decidido ignorar: do lado de fora, uma guriazinha magra e miúda, com a cabeça coberta por um saco plástico para se proteger da chuva. Dou as costas para a minha recém-descoberta sobrinha e entro no templo do consumo. Compro o que tenho que comprar e depois procuro algo para dar pra ela. Tenho geralmente várias desculpas prontas para me recusar a dar esmolas, como "Não se deve dar o peixe, mas ensinar a pescar", "Se eu der, ela ficará dependente", "Ajudar uma só pessoa não vai resolver os problemas do mundo", etc, mas como negar um pouco de comida a uma menininha molhada num dia de frio e chuva?

Penso em comprar pra ela um pacote de Trakinas, mas talvez entupi-la de gordura trans não seja a melhor maneira de combater a sua fome. "Essa menina precisa de proteína", penso eu, que além de sociólogo de bodega virei nutricionista de bodega, e vou ao balcão de comidas prontas lá no fundo. Compro dois espetinhos suculentos e apetitosos, que são embalados numa daquelas bandejinhas de isopor, envoltos em um filme de PVC. Ao sair do supermercado, entrego pra ela os espetinhos e digo:

- E depois de comer, joga o saquinho na lixeira, tá?

Ela faz que sim com a cabeça, eu dou as costas e me vou, pensando que ela certamente vai jogar a embalagem no chão. Depois de atravessar a rua, viro a cabeça para ver o que ela fez e... ela não está comendo, mas guardando a comida em uma sacola, para depois continuar de pé ao lado da porta. Certamente esperando que outro tio lhe dê mais. Certamente guardando para levar para casa, para uma família que a espera ávida por doações dos tios que a sustentam.

É triste viver num país em que muitos e muitos sobrinhos vivem da caridade de tios que sequer sabem os seus nomes. É triste que tantas pessoas precisem de tios para suprir as suas necessidades mais fundamentais. É triste que essa tarefa tenha sido jogada nos ombros dos tios. Eu, com minha concepção pequeno-burguesa de que cada um deveria ter um pai e uma mãe de verdade, pouco ou nada faço para melhorar a vida dos meus muitos sobrinhos espalhados por aí.

Qual será o futuro da minha sobrinha anônima? Terá ela um dia os seus próprios filhos? Ficarão eles nas portas dos supermercados, pedindo comida aos tios que entram? E eu? Que farei para ajudar os meus sobrinhos? Passarei a vida escrevendo textinhos inócuos para sites de meia dúzia de visitantes? Jogarei migalhas às menininhas nos domingos chuvosos? Votarei em candidatos idealistas que depois se revelarão iguais ao resto da escumalha? Cairei na tentação de usar as mazelas humanas como matéria-prima para crônicas que servirão unicamente para nutrir a minha vaidade?

(...)

O Drummond que me perdoe pelo plágio. Mas eta vida besta, meu Deus.

25 agosto 2007

A HIPERTROFIA POLÍTICO-ESTOMACAL BRASILEIRA

Depois de muito refletir, tive uma Revelação (daquelas com erre maiúsculo) e descobri quem é o grande culpado pela tolerância crescente dos brasileiros à corrupção e à incompetência dos governantes. Essa Revelação aconteceu, é claro, no lugar mais propício para a meditação e a iluminação espiritual: uma lanchonete da Cidade Baixa.

Entrei lá com alguns amigos e, quando o garçom se acercou para anotar nossos pedidos, eu lhe disse que queria um xis coração e uma coca de 600ml. Minutos mais tarde, ele apareceu com os nossos lanches, entre eles o meu: um colossal sanduíche cujo recheio incluía ovo, queijo, milho-verde, ervilha, tomate, alface, maionese e corações suficientes para bombear o sangue de uns trezentos frangos, pelo menos. Mas o mais importante para a minha Revelação não foi o xis, e sim o que veio junto com ele: seiscentos mililitros de refrigerante de cola dentro de uma garrafa de plástico.


Comi aquele xis com todos aqueles corações, bebi toda aquela coca e fiquei saciado. Foi então que me pus a refletir e, como num passe de mágica, percebi claramente quem devemos culpar pela passividade do povo brasileiro perante os escândalos políticos. A culpa é toda das empresas de refrigerante.

O leitor está se perguntando, ou pelo menos deveria, o que têm a ver com isso os fabricantes de bebidas. Uma pequena viagem no tempo talvez nos ajude a entender a questão.

Antigamente, quando um cara entrava numa lanchonete e pedia um xis, ele bebia junto com o sanduíche uma garrafinha de refrigerante, daquelas de vidro. E ficava saciado. Sabe quanto refrigerante cada garrafinha daquelas continha? Duzentos e oitenta e quatro mililitros. Foi nessa época que o Collor perdeu o mandato por causa de um Fiat Elba.

Depois, mais ou menos na época em que o Fernando Henrique comprou alguns votos para aprovar a reeleição, o Toninho Malvadeza era rei em Brasília e ninguém entendia como o povo não se revoltava, sabe o que o brasileiro médio bebia para acompanhar o xis? Uma lata de refrigerante. Trezentos e cinqüenta mililitros. E era suficiente.


Hoje, vemos a corrupção chegar ao Supremo Tribunal Federal, vemos o Mangabeira Unger assumindo um posto no mesmo governo que afirmou ser o mais corrupto de todos os tempos, vemos a dança bizarra da Angela Guadagnin, e tudo isso só é aceito porque agora um sujeito precisa de 600 ml de refrigerante pra se sentir saciado.

Trata-se, sem dúvida, de uma grande conspiração da indústria de refrigerantes para nos tornar hiper-resistentes ao açúcar, ao ácido fosfórico e à sem-vergonhice dos políticos. Ora, o mesmo brasileiro que antes se contentava com 284ml de água gaseificada com sabor agora precisa de 600ml. Com isso, acabamos todos engordando, perdendo a noção dos limites e do tamanho do nosso estômago. Viramos máquinas de digerir porcarias. Nada mais nos deixa repugnados. Engolimos tudo sem pestanejar. Os deputados aumentaram os próprios salário de novo? Ah, a gente engole essa. É só tomar um Engov depois. As CPI's acabam em pizza? Hum, adoro pizza. Vou pedir uma Coca 2 litros pra acompanhar.

Por mim, basta. Eu estou decidido. Na próxima vez em que for a uma lanchonete, vou pedir o meu xis coração e um copinho d'água. Dos pequenos.

12 agosto 2007

ESSES BÊBADOS E SUAS HISTÓRIAS

Nenhum lugar do mundo é tão bom para se contar histórias quanto uma boa bodega. As histórias podem ser verdadeiras, inventadas ou um pouco de cada, dependendo do contador e da platéia. Foi em uma bodega que ouvi, da boca de um sujeito que parecia absolutamente confiável, a história de Lisarb.

Lisarb é uma estranha terra onde tudo é ao contrário.

Lá, a honestidade é um defeito e a malandragem é uma virtude. Quem rouba pouco passa muito tempo na cadeia e quem rouba muito sequer chega a ser preso.

A imensa maioria da população lisarbeira é constituída de pobres, mas foram necessários quinhentos anos para que um pobre chegasse ao poder - e primeiro ele teve que deixar de ser pobre. Por falar nisso, lá em Lisarb as universidades públicas são para quem tem dinheiro e quem não tem acaba estudando nas particulares. As escolas de Lisarb não ensinam e os alunos de Lisarb não aprendem, apesar de os pedagogos do país dizerem a todo mundo que a educação lisarbeira é moderna e libertadora.

Lisarb é um país onde os eleitores votam em corruptos mesmo sabendo que eles são corruptos. E os corruptos presidem CPI's em que fingem que julgam outros corruptos, para simular que trabalham nos poucos dias em que não estão fazendo de conta que visitam as bases. É também um país onde o presidente da Câmara dos Deputados declara que o salário dos congressistas "não é tão alto assim" e não leva sequer uma bofetada do entrevistador.

A estranheza de Lisarb é tal, que lá o povo paga impostos de Welfare State e recebe serviços de República de Bananas. As pequenas empresas lisarbeiras têm que fechar as portas porque não conseguem dar conta da carga tributária, enquanto o governo gasta bilhões socorrendo os bancos que não conseguem sobreviver mesmo extorquindo os clientes.

Como em Lisarb tudo é ao contrário, lá os jogadores de futebol, os cantores de pagode e as peruas siliconadas estão no topo da cadeia alimentar social, enquanto alguns professores universitários ganham menos que os motoristas de ônibus. Para se ter uma idéia da esquisitice do lugar, as maiores celebridades do país são os ex-participantes do GRL (Gib Rehtorb Lisarb), um programa de TV em que vários vagabundos passam semanas inteiras confinados em uma casa exercitando a arte da intriga e do ócio improdutivo, para deleite de milhões de desocupados e pederastas.

É desnecessário dizer que nenhum dos ocupantes da mesa acreditou nessa história. Uns balançaram a cabeça, para fazer de conta que gostaram, outros perguntaram se alguém sabia a última do português, pra mudar de assunto. Até o Valdir tinha um sorriso sarcástico nos lábios enquanto recolhia as garrafas vazias e passava um pano úmido na mesa. Mas a situação acabou ficando meio chata, pois o cara insistiu que era tudo verdade, quando todo mundo sabia que não pode existir um país assim. O jeito foi bater nas costas dele e dizer "Tá certo, tá certo..." Uma das principais coisas que se aprende numa bodega é que não dá pra contrariar um bêbado.

23 julho 2007

RELIGARE

Afirmam os religiosos e os filólogos que o termo RELIGIÃO vem de RELIGARE, re-ligar, unir de novo o que foi separado. No caso (e aqui apenas os religiosos continuam especulando, pois os filólogos saíram pra beber e inventar trocadilhos engraçadinhos), trata-se de unir de novo o humano e o divino, o terreno e o celestial, o material e o imaterial, o concreto e o místico. Um belo conceito, devo dizer. Si non è vero, è bene trovato.


Quando crianças, aprendemos que existe um Papai do Céu de barba branca, que usa vestido e ouve tudo que dizemos, vê tudo que fazemos (mesmo quando apagamos a luz do banheiro), conhece de cor o nosso passado e, pasmem, o nosso futuro. Aprendemos que esse Papai do Céu é muito bondoso e compreensivo, mas não hesitará em nos jogar no fogo eterno se ousarmos perder a missa, comer carne na Sexta-feira Santa ou espiar as meninas tomando banho de sol. Sim, um cretino, mas que dá todas essas ordens para o nosso bem.


Depois que crescemos, ficamos orgulhosíssimos da nossa genialidade ao dizer em alto e bom som que não acreditamos em Deus e que o Altíssimo, seu Filho e toda a Corte Celestial são: a) uma invenção do sistema opressor para alienar as cabecinhas ocas do proletariado e perpetuar a opressão; ou b) uma artimanha deveras lucrativa de um bando de matutos que tiram até o último centavo das pobres viúvas em nome de Deus. E nós, que desmascaramos os farsantes, somos muito espertos!


Será?


Sim, há instituições religiosas que colaboram para legitimar a exploração do homem pelo homem. É um argumento excelente dizer aos pobres que eles devem suportar o seu sofrimento e, mais que isso, ter orgulho da própria pobreza para merecer a Salvação Eterna.

Sim, há instituições religiosas que lucram com a fé e o desespero das pessoas simples de coração. Há padres católicos que vivem como príncipes nababos às custas das doações. Há aviões que sobrevoam o país com malas cheias de dinheiro de ofertas e dízimos pagos a lobos travestidos de pastores.


Mas a nossa investigação do conceito de religião deve ser menos ingênua, mais radical e mais profunda. É perigoso ou pretensioso fazer afirmações universalizantes baseadas em casos particulares.


Para começo de conversa (sim, estamos apenas começando, leitor... mas você terá que ler até o fim se quiser ir para o céu), seria interessante perguntarmos: se a religião é só um mecanismo de controle ou um negócio rentável, por que raios os bilhões de fiéis mordem a isca ao invés de irem fazer um monte de coisas prazerosas e proibidas?


E a resposta, não é novidade, é: porque o homem é mortal.


Em algum lugar da sua caminhada evolutiva (seja ela resultado de um boneco de barro criado por Deus ou produto do egoísmo dos genes), o Homo sapiens deu-se conta da própria mortalidade. E entrou em desespero.


Depois de alguns suicídios (ainda não tinham inventado a Psicanálise e nem a Auto-ajuda), o fim da vida passou a ser visto como o começo de uma nova vida: a vida após a morte. O homem, esse egoísta incorrigível, não se conforma com a morte. Ele quer continuar vivendo. De preferência, em um Paraíso com rios de vinho e virgens à disposição. A religião, ao prometer a vida eterna, veio ao encontro dessa necessidade do homem de vencer a morte.


Além disso, o surgimento da racionalidade levou o homem a perguntar não apenas como ou onde, mas também por quê. O senso comum e a "ciência" nascente responderam algumas dessas questões, mas de repente se começou a buscar respostas para o maior porquê de todos: o porquê da Vida, o porquê da Morte, o porquê de Tudo.


A Religião foi apenas uma das respostas para essa pergunta. O místico surgiu como uma tentativa de explicação do que ainda não foi explicado - e talvez nunca venha a ser. O homem passou a supor e depois passou a crer em entidades imateriais, sobrenaturais, divinas. Seres superiores que criaram tudo que existe e que, de vez em quando, interferem no destino das coisas criadas, só de sacanagem. Agradar esses seres tornou-se uma obrigação, para obter a bênção divina. E assim surgiram as preces, as cerimônias, as cosmogonias, as danças rituais e, claro, as guerras santas.


O fenômeno religioso, essa busca por conexão com o imaterial, está presente em todas as culturas. Todos os povos do mundo têm seus deuses, seus orixás, seus kamis, seus cultos, seus karmas. Os marxistas fingem que não participam disso mas adoram o Partido quando ninguém está olhando.


Essas tentativas de religação com o transcendente nem sempre são alienantes ou exploratórias. Pessoalmente, acho linda a religiosidade dos povos indígenas americanos, a sua busca de contato com o cosmo, o culto e o respeito à natureza como forma de comunhão com o universo. É uma manifestação do fenômeno religioso que deriva em uma ética do cuidado e do amor. Algo tão em falta na nossa sociedade decadente e auto-destrutiva, mas que ainda se orgulha da própria auto-suficiência e do próprio ateísmo.


Em tempo: quando preencho algum questionário, respondo “Agnóstico” no campo entitulado “Religião”.

28 junho 2007

O ECCEOMO, ESSE ANIMAL CULTURAL


(e danem-se os agás, preciosistas de meia-pataca!)

Os ecceomos eram, sem dúvida alguma, um tipo singular de animal, dentre tantos os que povoavam os desertos de Kubrickland.


A maioria das espécies que lá viviam ocupavam dois terços do seu dia procurando comida. O outro terço era preenchido pela fuga e/ou enfrentamento com predadores e o terço final era prazerosa ou desprazerosamente ocupado pelas atividades de procriação (e o fato de o seu dia possuir quatro terços não é nenhum absurdo se levarmos em conta que o excesso de atividades de sobrevivência não dava a esses pobres animais tempo livre suficiente para desenvolver uma Matemática).


Os ecceomos, depois de uns bons anos de Evolução, não precisavam mais gastar tanto tempo com a manutenção da própria sobrevivência, pois alguns dos mais inventivos representantes da espécie tiveram um dia (ao som de Strauss) a bela idéia de usar paus e pedras e ossos para bater em outros animais até que eles tombassem e pudessem ser esquartejados para virar alimento. Os paus e pedras e ossos também foram de grande serventia para espantar os predadores e para resolver os litígios causados pelas necessidade de acasalamento, e tudo isso deu ao ecceomo médio muito tempo livre para pensar em outras coisas - como, por exemplo, maneiras de deixar os paus e pedras e ossos cada vez mais afiados.


Com o uso dos paus e pedras e ossos para matar outros animais e outros ecceomos, o ecceomo deixou de ser um animal normal para ser um animal cultural.


O ecceomo criou a cultura e a cultura criou o ecceomo.


O enorme tempo livre e o sentimento de invencibilidade permitiram que ele se espalhasse por outras terras, criando ferramentas cada vez mais sofisticadas, desenvolvendo idéias, teorias e conceitos cada vez mais abstratos, pintando nas paredes das cavernas e catedrais figuras cada vez mais estranhas, desintegrando o átomo e criando blogues engraçadinhos pra pensar questões alheias aos outros animais.


O ecceomo está impregnado de cultura. Quando um filhote dessa espécie nasce, ele é mergulhado nesse caldo (o caldo cultural) e passa a beber e nadar e produzir bolhas nessa piscina de cultura. Tudo que ele vive e sonha e imagina e inventa e constrói e destrói acaba agregando mais e mais cultura a essa cultura. É cultura se reproduzindo e se modificando e criando mais cultura, que é sempre a mesma cultura apesar de ser sempre uma nova cultura.


É isso que faz dessa espécie animal uma espécie tão admirável e tão detestável.


O ecceomo criou a cultura. E a cultura criou o homem.


E no final, o Dave Bowman voltou a ser um bebê e a platéia nada entendeu, apesar de a resposta ser tão simples.

29 maio 2007

OS PEDROS E SEUS BRASIS

(Passado, presente e futuro de dois criminosos brasileiros)

Por uma dessas inexplicáveis coincidências cósmicas, Pedro e Pedro nasceram no mesmo dia, na mesma cidade e receberam o mesmo nome: Pedro Henrique Santana. Mas, por uma dessas perfeitamente explicáveis circunstâncias humanas, cada Pedro nasceu num país diferente, a despeito de a cidade ser a mesma.

Um dos Pedros nasceu no Brasil emergente, a décima-segunda economia mundial, o país cuja moeda mais se valorizou nos últimos anos, o Brasil que está entre os primeiros do ranking de compradores de celulares, jatinhos e cuecas com bolsos internos.

O outro Pedro nasceu no Brasil pobre, campeão de desigualdade, o Brasil das favelas, o Brasil em que a maioria da população não tem acesso sequer aos serviços mais básicos.

O Pedro pobre não gostava de estudar. No Ensino Fundamental, ia para a escola por obrigação, porque a mãe tinha medo de se complicar com o Conselho Tutelar. No Ensino Médio, ia para a escola para namorar e beber com os amigos. No seu Brasil, estudou em escolas públicas, onde era aprovado mesmo que não atingisse os resultados mínimos - em parte porque alguns professores queriam se livrar dele, em parte porque a Secretaria de Educação obrigava as escolas a aprovar o maior número possível de alunos, só para engordar as estatísticas. Ele não sabe que profissão quer ter.

O Pedro rico também não gostava de estudar. Mas cresceu numa casa cheia de livros, jornais e revistas, com Internet e TV a cabo. Os pais o matricularam, desde muito jovem, em cursos de Inglês, Francês, Teatro, Judô e Informática. No seu Brasil, estudou em escolas particulares e fez o melhor cursinho pré-vestibular, ingressando numa concorrida Universidade pública após três tentativas. Ele não se importa muito com a futura profissão, pois vai herdar a empresa do pai, no fim das contas.

São estreitos os horizontes de um dos Pedros. Nunca saiu do seu estado, quase nada sabe sobre o resto do mundo e sua vida orbita entre o futebol, as festas com amigos e a luta pela sobrevivência.

O outro Pedro é cosmopolita. Passou várias férias em praias do Nordeste, conhece os Estados Unidos e a Austrália. Freqüenta os bons cinemas, janta nos melhores restaurantes, participa de festas badaladas.

O Pedro pobre ainda não sabe o seu futuro, mas eu sei (falo deste Pedro, e não de todos os pobres do Brasil, pombas!). Ele vai entrar no crime. Começará fazendo pequenos furtos com amigos. Depois, será preso num grande roubo. Na cadeia, aprenderá tudo que alguém precisa saber para se tornar um bandido perigoso. Depois de solto, será morto por uma milícia de justiceiros. E ninguém jamais saberá o seu nome.

O Pedro rico também vai entrar no crime. Começará sonegando impostos e desviando o FGTS dos funcionários. Depois, montará um esquema com o tio deputado para lavar dinheiro, fraudar licitações e traficar influência. Será preso numa mega operação da Polícia Federal, mas em seguida comprará a liberdade via habeas corpus concedido pelo Supremo. Seu nome aparecerá em todos os jornais como sinônimo de corrupção, mas na semana seguinte ninguém lembrará dele, que poderá voltar a roubar em paz.

É claro que esses futuros podem ser - e provavelmente são - apenas exageros tendenciosos deste colunista. O fato é que todos os Pedros, Joões, Marias, Anas, Josés, Carolines e Clébersons vivem na zona de convergência entre dois países tão diferentes e tão semelhantes. A tarefa de todo governante, empreendedor, intelectual, religioso, operário, camponês, artista, estudante, dona-de-casa, aposentado, desempregado e vagabundo deve ser contribuir para que acabe esse abismo de desigualdade, para que todos possamos viver no mesmo Brasil, um Brasil com oportunidades para todos, um Brasil onde o futuro de cada um seja decidido pela sua livre escolha e não pelas circunstâncias desfavoráveis ou pelos caprichos de um pretenso escritor.

14 maio 2007

CÁLIDAS REMINISCÊNCIAS HIBERNAIS

Quem reclama do bairrismo dos gaúchos nunca provou um espinhaço de ovelha se desmanchando na panela de ferro, comido com aipim bem novinho. Ou então, pinhões assados na chapa do fogão a lenha. Colocam-se na chapa dois ou três pinhões de cada vez, virando de vez em quando pra não queimar. Ou ainda, um ensopado de aipim (que os não-gaúchos insistem em chamar de "vaca atolada", o que já tira metade do sabor), que deve ficar uma manhã inteira cozinhando, até que a carne de peito de boi fique bem macia e o aipim vire um caldo grosso, borbulhando enquanto a grande panela chacoalha sobre o fogão a lenha.

Ah, o fogão a lenha... Nele reside boa parte do bairrismo gaúcho - o meu, pelo menos. Acender o fogo é um verdadeiro ritual. Começa-se tirando a gaveta das cinzas para esvaziá-la nos fundos do pátio, num montinho que vai crescendo até que a cinza seja usada para adubar a horta. Depois, abre-se a portinha do fogão para colocar lá, de cantinho, o "guarda-fogo", uma acha de lenha mais grossa e densa, que pode ser de eucalipto, acácia, maricá, anjico ou outro tipo de madeira dura, desde que o IBAMA não esteja por perto. Ao lado do guarda-fogo deve ser colocada uma maçaroca de papel (que, quando possível, deve ser substituída por palha de milho ou cartuchos de taquara) sobre a qual põem-se os gravetos, bem fininhos. Acende-se o fogo e, à medida que os gravetos começam a queimar, deve-se ir colocando lenha paulatinamente mais grossa. O passo seguinte é botar sobre o fogão uma ou duas chaleiras d'água pra esquentar. É simplesmente um pecado mortal acender o fogão a lenha e não botar a chaleira pra esquentar. Depois que a água esquenta, é só cevar o mate e sentar-se ao pé do fogo enquanto o minuano sopra lá fora, impiedoso. O fogão a lenha é ao mesmo tempo uma fonte de aquecimento, um auxiliar no preparo da comida e o ponto de encontro de toda a família. O crepitar do fogo e o chiado da chaleira são trilhas sonoras marcantes da minha infância.

O inverno gaúcho é uma estação de delícias. Além dos quitutes já citados, não podemos esquecer a maravilha das sopas de todos os tipos, apreciadas quentinhas, com grossas fatias de pão e noz-moscada ralada. E o carreteiro? Outro manjar dos deuses, que pode ser preparado com charque, com lingüiça ou com carne - e até com restos do churrasco de domingo. Naquelas tardes de chuva, bolinhos fritos embebidos em melado. Nas noites mais frias, um panelaço de quentão, bebido na xícara. Que coisa linda é o inverno gaúcho...

Essas quentes recordações do nosso belo inverno vão esfriando cada vez mais na minha memória. Primeiro, porque não moro mais no interior de São Sebastião do Caí e sim em Porto Alegre - onde nunca vi um fogão a lenha.

Além disso, a rotina frenética do dia-a-dia impede-nos de sentar ao pé do fogo para chimarrear ouvindo o chiado baixinho da chaleira. Vivemos com pressa, nunca em casa, sempre atrasados.

E a comida? Além da Dona Olmira, minha querida avó quituteira, quem mais tem tempo para esperar três horas pelo cozimento de um ensopado de aipim? Em tempos de microondas, ninguém visita a cozinha por mais de cinco minutos seguidos.

Por fim, outro motivo para o arrefecimento das minhas melhores lembranças quentinhas de inverno é que... nós simplesmente não temos mais inverno! Pra mim, que não morro de amores pelo verão, um dos orgulhos de ser gaúcho era poder dizer que aqui nós tínhamos inverno de verdade, quando chegava aquele frio de renguear cusco e congelar a água do tanque. Eu ia a pé para a escola, todos os dias, e via os campos da Dona Cenilda branquinhos de geada, enquanto o nariz doía de frio. Há quanto tempo não temos mais invernos assim? Será que o aquecimento global vai nos tirar até o nosso inverno, essa faceta tão marcante e poética da nossa cultura? Será que não vou mais poder (depois de aposentado, que seja) sentar ao lado do fogão a lenha e ver os pinhões assando na chapa? Nunca mais encherei a xícara de quentão com a concha, pra sentir aquele calor gostoso descer pelo meu esôfago? E o aroma do ensopado de aipim cozinhando beeeeem devagar, vai ficar só na memória?

Se a loucura suicida do aquecimento global nos privar de todas essas coisas que me fazem amar ser gaúcho, só vejo uma saída no horizonte: emigrar pra Patagônia.

05 maio 2007

Enquanto isso, no País das Maravilhas...

O noticiário brasileiro é, enquanto noticiário, um belo exercício de produção literária, a ponto de deixar roxos de inveja os mais adoidados autores da Literatura Fantástica. Duvido que haja, entre os romancistas, alguém capaz de elevar o absurdo e o nonsense à mais bela forma de expressão artística, como fazem os jornais, revistas e emissoras de rádio e TV nas terras tupiniquins.

E a culpa nem é dos órgãos de imprensa. As notícias de Pindorama parecem absurdas ao leitor desavisado não por serem contadas de modo absurdo, mas sim porque dizem respeito a uma Terra Encantada, onde as coisas nunca são o que parecem ou o que deveriam ser. São descrições, mais ou menos fiéis, de uma zona de imponderabilidade onde leis universais como a Gravidade, a Lógica, a Coerência e a Vergonha na Cara deixam de exercer o seu poder.

Se o leitor duvida, peço que me acompanhe numa caminhada através desses bosques encantados, a fim de nos maravilharmos com a magia das narrativas jornalísticas dessa terra de contos de fadas.

A primeira coisa absurda que vemos através da imprensa diz respeito à descoberta, no Rio Grande do Sul, de um esquema para "furar a fila" das consultas nos hospitais de Porto Alegre. Parece que, em Pindorama, os velhinhos têm prioridade no atendimento. Pois bem, alguns personagens matutos dessa fábula criaram, no interior do estado, um asilo fictício que pedia consultas verdadeiras para velhinhos fictícios e depois as vendia para pacientes verdadeiros, que não eram idosos mas tinham dinheiro para pagar pelo atendimento antes dos primeiros da fila. Até aqui, o conto de fadas parece obra de um contador de histórias mediano, como tantos Grimms que encontramos nas estantes de livros infantis. Mas o toque de classe, a sacada de gênio dessa fábula bizarra é que um dos sócios-fundadores do tal asilo é hoje assessor do líder do Governo na Assembléia Legislativa, o deputado Alexandre Postal. Incrível! Bravo! No mundo real, isso daria cadeia para o assessor e o deputado renunciaria por uma questão de vergonha na cara, sendo investigado em seguida. Mas, na Terra da Fantasia, o que acontece? Alexandre Postal declara que o seu assessor não é mais sócio do asilo de mentirinha, e que não há nada que desabone a conduta do seu funcionário. E ninguém mais toca no assunto.

Outro capítulo do romance fantástico é a entrevista dada pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arlindo Chinaglia, à revista IstoÉ. Lá, ele diz que os deputados não trabalham tão pouco quanto se pensa. Afirma que eles precisam de todos aqueles dias longe do batente para estar junto das bases, exercendo o seu papel representativo. Indagado sobre o porquê de se conceder aumento de salário aos deputados, dando ainda mais vulto aos seus já vultosos rendimentos, ele se defende dizendo que os deputados receberam apenas um reajuste sobre as perdas da inflação dos últimos quatro (!) anos, e ressalta que os deputados não ganham muito, se comparados a outros profissionais de igual importância.

Pois bem. Noutra página da mesma revista temos uma amostra de como, no País das Maravilhas, tudo isso funciona na prática. Ou seja, exemplifica-se como os deputados ocupam o tempo destinado a exercer seu papel representativo, e como gastam o seu salário-não-tão-alto-em-termos-relativos. Conta a revista que o deputado Átila Lins, dos Democratas (sic) do Amazonas, passou um pouco do seu tempo livre no bar do hotel Meliá, em Brasília, fumando alguns charutos cubanos acompanhados de vinte doses de uísque Ballantines 30 anos, R$145 a dose. Portanto, só em uísque o representante do povo gastou R$2.900, ou mais de sete salários mínimos, em algumas horas. No mundo real, seria no mínimo imoral que um representante do povo gastasse, numa happy hour (very happy, pelo visto), uma soma sete vezes maior que o salário de boa parte do povo que representa. Mas não esqueça, leitor, que não estamos no mundo real. Não critico o uso que um deputado possa fazer do seu salário. Critico a bizarra desigualdade de um país em que o salário mínimo não paga nem três doses do uísque bebido pelos parlamentares. Nessa comparação, senhor Chinaglia, os deputados ganham demais, sim.

Outro episódio do conto de fadas sem fadas saiu em todos os órgãos da Imprensa, com exceção das revistas de fofocas e dos jornais sensacionalistas. O presidente de Pindorama criou, por canetaço, o Ministério para Ações de Longo Prazo, uma quimera que ninguém do Governo sabe explicar para que serve, a não ser para onerar ainda mais os cofres públicos. Trivial, em se tratando do País das Maravilhas. Mas, uma vez mais, a sacada genial dessa fábula veio depois, com o anúncio do nome do ministro da nova pasta: o Prof. Roberto Mangabeira Unger, de Harvard, um brasileiro tão brasileiro que mal sabe falar português. O mesmo Mangabeira que, em 2005, declarou que o Governo Lula é o mais corrupto de todos os tempos e exigiu que os deputados pedissem o impeachment do ex-operário. No mundo real, depois de uma declaração dessas, qualquer professor de Harvard que fosse convidado para integrar o governo que criticou com tanta veemência desafiaria o presidente para um duelo de pistolas ao amanhecer. O bom Mangabeira não desafiou Lula para o duelo. Ele aceitou o convite, e passará a fazer parte do mesmo governo que afirmou ser o mais corrupto de todos os tempos. O absurdo também é uma forma de arte.

Em qualquer lugar do mundo real, todos esses episódios embasbacantes seriam de um ridículo só encontrado na Literatura. Por aqui, essa crônica do absurdo é a imagem do que acontece todos os dias, um mundo de fábula em que ninguém parece perceber ou se importar com tais acontecimentos. E, enquanto a maioria de coadjuvantes nem sabe que está pagando o pato, os vilões vivem felizes para sempre.

14 abril 2007

PIADA PRONTA, como diz o Kibe Loco

Na IstoÉ da semana passada, li algo, no mínimo hilário, sobre um pronunciamento do líder de extrema-direita francês Jean-Marie Le Pen (aquele que tirou os socialistas do segundo turno nas últimas eleições). Le Pen, ao falar de prevenção da AIDS, disse que, ao invés de se fazer campanhas pelo uso da camisinha, deve-se incentivar entre os jovens o hábito da masturbação, mais seguro e menos imoral.

Este colunista nada tem a acrescentar

01 abril 2007

O TEOREMA DE SARNEY

(ou: CONTRIBUIÇÕES DO CONGRESSO BRASILEIRO ÀS PESQUISAS SOBRE A FÍSICA DO CAOS)

Sinceramente, nunca entendi o porquê de um parlamento bicameral, ainda mais no Brasil. Se a idéia original de tal sistema era aumentar a representatividade do governo e aprofundar o debate na elaboração das leis, por aqui ele só tem servido para truncar o processo democrático – além de deixar pela hora da morte os preços da compra de votos.

Ter deputados e senadores só complica as coisas. Alguém aí consegue entender o que é preciso para se aprovar um projeto de lei nesse país? É uma equação com variáveis demais. Eu já desisti de tentar compreender tais mistérios. Prefiro poupar esforços mentais para o enfrentamento com questões mais simples, como o Cálculo Infinitesimal ou a Estética Transcendental de Kant, mas, até onde consigo me situar, parece que a coisa toda funciona mais ou menos assim:

PASSOS PARA RESOLVER A EQUAÇÃO:

1) Um deputado idealista (sic) elabora o projeto, que é enviado para apreciação dos nobres colegas.

2) Os nobres colegas mandam os líderes de suas bancadas dizerem que só aprovarão o projeto se alguns parágrafos forem alterados, ou se rolar um por fora.

3) No dia da votação, não aparece ninguém no plenário, a não ser o deputado Givanildo Sampaio (PFL-PI), que tinha esquecido o celular embaixo da cadeira.

4) Oito meses depois, à custa de muita barganha (sim, é um eufemismo, leitor), o projeto é aprovado, cheio de remendos.

5) O projeto é enviado para o Senado, onde é recebido com desdém por senadores que afirmam não ter tempo devido às muitas matérias para apreciar, sem contar as MP’s trancando a pauta.

6) Depois de acertado o custo (que pode ser político ou monetário) da votação, os senadores rejeitam o projeto.

(Aqui eu me perdi, leitor. Agora o projeto deve voltar para a Câmara? Quais são exatamente as modificações que os senadores exigem? Ele deve ser aprovado por unanimidade, por maioria simples, por mais da metade, por quatro quintos ou seis oitavos? Bem, não importa. Qualquer que seja o resultado, se o texto da lei continuar do jeito que está o presidente vai vetá-la, mesmo.)

7) Seis meses depois, o projeto, já modificado, está para ser votado pela segunda vez na Câmara. Mas a votação é adiada porque um deputado governista foi visto aos beijos com a filha de um conhecido padeiro de Brasília. É aberta a “CPI do Pão Francês”, para apurar as denúncias de superfaturamento do pão servido no café da manhã do presidente.

O cálculo pode ter duas soluções:

A) Um ano e meio depois, os deputados e senadores estão preocupados demais com suas campanhas de reeleição e não vão perder tempo com um projeto tão insignificante.

B) O governo investe pesado, dá cinco ministérios aos partidos de “Oposição,” o projeto sofre grandes alterações, é aprovado nas duas Casas e sancionado. E assim, o que nasceu como a proposta de criação de um Imposto sobre a Fortuna acaba se tornando um programa para abertura de poços artesianos nas fazendas de congressistas nordestinos.

01 março 2007

O FILHO COMUNISTA DO DR. SARAIVA

Só podia ser praga de brizolista, era o que muitos diziam ao Dr. Saraiva sobre o seu filho. Outros, mais vividos, consolavam o velho dizendo que era tudo fogo de palha, que o rapaz tomaria jeito assim que constituísse família e tivesse obrigações. Mas o Dr. Saraiva não tinha assim tanta certeza quanto ao futuro do seu caçula, nem quanto à origem da esquisitice do menino. Podia até ser de nascença...

Começaram a desconfiar que o Juquinha era meio “diferente” quando ele organizou uma greve de fome no Jardim de Infância, em solidariedade aos metalúrgicos grevistas do ABC. Os revolucionários da “Primavera de Pampers”, como ficou conhecido o movimento, resistiram heroicamente por três horas e meia, até que alguns camaradas começaram a chorar de fome e foram socorridos pelas “tias” com papinhas ou mamadeiras, de acordo com a idade.

Anos depois, enquanto todos os outros meninos colecionavam figurinhas do Zico, do Rummenigge e do Platini, Juquinha montou seu próprio álbum, com fotos roubadas da Barsa do pai: “figurinhas” de Yuri Gagárin, de Mao Tse-tung, de Ho Chi Minh e dos heróis da Revolução Russa.

Muitos colégios tradicionais expulsaram Juquinha, pois em todos eles o garoto criava jornais panfletários atacando a direção e os professores. Na Faculdade, formou-se praticamente sem estudar, pois acumulava funções no Diretório Acadêmico, que chegou a presidir naquela que ficou conhecida como a gestão mais radical desde 68, ou até mais radical que a de 68, segundo alguns.

Graças ao prestígio do Dr. Saraiva, Juca conseguiu vários bons empregos, mas foi demitido de todos eles, por tentar organizar os trabalhadores contra a tirania dos patrões, o que na prática serviu apenas para reduzir o círculo de amizades do pai.

O Dr. Saraiva, por fim, entregou os pontos. Juca estava fadado a ser um ninguém, condenado a passar a vida a circular por botequins de intelectuais e reuniões do PC do B. O PC do B! Um ultraje!

Pai e filho cortaram definitivamente relações após as eleições de 2002 (depois, ambos veriam que hoje em dia o “definitivamente” está se tornando um conceito bastante flexível). O motivo do rompimento foi uma carta enviada por Juca logo depois de anunciado o resultado do pleito. A epístola era de uma concisão apavorante: “Saraiva, tens dois meses para sair do país. Em janeiro, o povo baterá à tua porta para cobrar o que tu roubaste. Saudações Marxistas! Juca.”

Não se sabe ao certo o que aconteceu no breve hiato em que o Dr. Saraiva e seu caçula estiveram brigados, mas hoje eles são grandes amigos, pela primeira vez na vida. Juca continua no PC do B, ocupa um cargo de segundo escalão num Ministério que preferimos, por motivos óbvios, não revelar, e vem conseguindo para a empresa do pai lucrativos contratos.

O Dr. Saraiva, ora vejam, está até cogitando filiar-se ao partido do filho...

21 fevereiro 2007

SIMULÃO DO VESTIBULAR PARLAMENTAR

A democracia representativa mostrou-se incapaz de nos arranjar bons governantes. Já está mais do que na hora de sofisticarmos um pouquinho o processo democrático: proponho que os nossos congressistas, uma vez eleitos, só sejam empossados depois de aprovados num Vestibular Parlamentar. E que os reprovados sejam declarados inelegíveis por pelo menos duas eleições.

As perguntas do Exame Parlamentar poderiam ser mais ou menos assim:

(FAÇA A PROVA, LEITOR, E TESTE AS SUAS CHANCES DE CONCORRER A UM CARGO ELETIVO)

1) Quantas pessoas o salário mínimo pode sustentar?
a) Nenhuma.
b) Uma.
c) O que é salário mínimo?
d) Não conheço ninguém que ganhe tão pouco.
e) Quatro pessoas, mas só por um dia.

2) Quando acaba o dinheiro do salário (lá pela segunda semana do mês), que gastos você corta até a entrada do próximo pagamento?
a) Você deixa de comer até o fim do mês.
b) Você passa a ir a pé para o trabalho todos os dias.
c) Você deixa de pagar as contas de água e luz.
d) Você não paga uma das 12 prestações da sua TV de 20''
e) Quem disse que o dinheiro acaba?

3) Quais as opções de vida para um jovem da favela?
a) Ser aviãozinho de traficante.
b) Vender chicletes no sinal vermelho a vida inteira.
c) Estudar, trabalhar e passar a vida ganhando salário mínimo.
d) Fazer um monte de filhos, para ganhar mais dinheiro do Bolsa- Família.
e) Não creio que se possa chamar aquilo de Vida.

4) Quanto tempo o brasileiro precisa trabalhar a cada ano, para pagar os impostos?
a) Cinco meses.
b) Seis meses.
c) Sete meses.
d) Imposto não se paga; sonega-se.
e) Por mim, tanto faz. Eu não trabalho.

5) Por que alguém se torna deputado?
a) Para ser a expressão da vontade do povo.
b) Para ganhar um salário de 13 mil.
c) Para ganhar um salário de 13 mil, mais 3 mil mensais de auxílio-moradia.
d) Para ganhar um salário de 13 mil, 3 mil de auxílio-moradia e mais 4,2 mil mensais para cota de gastos com caixa postal e telefonia..
e) Para ganhar um salário de 13 mil, 3 mil de auxílio-moradia, 4,2 mil mensais para cota de gastos com caixa postale telefonia e passagens aéreas de graça para “visitar as bases”, sem falar da imunidade parlamentar.

6) A quem um congressista deve lealdade?
a) Ao povo.
b) A si mesmo.
c) Ao partido.
d) Aos financiadores da campanha.
e) Ao Capital Transnacional.

7)Qual dessas alternativas apresenta atitudes próprias de um bom congressista?
a) Aprovar gordos aumentos de salário para o Legislativo.
b) Comparecer às sessões e votar projetos que melhorem a vida do povo.
c) Cobrar propinas de empresas que participam de licitações.
d) Usar uma moto-serra para cortar ao meio os desafetos.
e) Participar de surubas pagas com dinheiro público.

8) Quantos reais cabem numa valise de tamanho médio?
a) Só transporto dólares.
b) Em notas de 100 ou de 50?
c) Está ficando arriscado usar valises. Melhor rechear os brinquedos das crianças.
d) Não tenho tanto dinheiro assim.
e) Não trabalho com dinheiro vivo. Favor depositar em minha conta nas Cayman.

9) O que acontece a um ladrão de galinhas que é preso?
a) Vira mulherzinha da cela inteira.
b) É usado como refém e acaba morto numa rebelião de presos.
c) Morre de tuberculose.
d) Aprende a traficar, assaltar bancos, clonar celulares e matar a sangue frio.
e) Por que me preocupar com isso? Eu tenho imunidade.

10) Quanta gente cabe num metro quadrado de ônibus urbano?
a) Quatro pessoas.
b) Oito pessoas.
c) Em horário de pico, infinitas pessoas.
d) Depende do tamanho das pessoas.
e) Não sei, nunca entrei num ônibus.

GABARITO:
Tudo é relativo, dizem os físicos quânticos e os filósofos franceses pós-modernos. Na verdade, os únicos critérios de aprovação no Vestibular Parlamentar são a quantidade e o valor das cédulas de dólar que o pretendente ao cargo grampeia na seção intitulada “Anexos.”

20 fevereiro 2007

PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DE SAMBA

Afirmam os entendidos que, no exterior, a imagem do Carnaval funde-se com a imagem do Brasil. Somos reconhecidos mundialmente como o “país do Carnaval”, com todos os predicados que tal título contém: mulatas seminuas (o “semi” é um eufemismo), noitadas embaladas por samba e marchinhas, muito álcool na corrente sangüínea e toda a celebração sexual resultante da soma desses fatores. Nos dias que passamos sob o reinado de Momo, basta olhar a primeira página dos jornais ou acessar os principais portais da internet para constatar que, a julgar pelas manchetes e pelas fotos, é mesmo verdade: somos o país do Carnaval.

Neste caso, sou um brasileiro atípico, um estrangeiro em minha própria terra: não suporto o Carnaval. Odeio-o a ponto de passar todos esses dias entrincheirado dentro de casa, com suprimentos extras de comida, bebida, livros e dvd’s. E já passou pela minha cabeça construir em torno do meu prédio um fosso com crocodilos, para que seja mais completo o meu isolamento dos foliões ensandecidos.

De dentro do meu bunker à prova de Carnaval, o Ninho da Águia, posso contemplar o fenômeno a partir de fora e fazer algumas ponderações (um tanto quanto preconceituosas, é verdade) sobre o festejo que pára o Brasil uma vez por ano.

Pra começo de conversa, quando, como e por que surgiu o Carnaval? Festejos semelhantes acontecem em quase todas as sociedades desde tempos imemoriais, com destaque para as colossais orgias greco-romanas em honra ao seu deus mais sacana: Dionísio para os gregos e Baco para os romanos. O Carnaval na data em que o conhecemos surgiu na Idade Média, por obra da Igreja, quando foi estabelecido o período da Quaresma. Esses quarenta dias antes da Páscoa eram marcados por jejuns e penitências muito rigorosas, e por isso o Carnaval era a grande festa de despedida dos prazeres da carne, antes da grande abstinência que viria (é por isso que alguns etimólogos insistem que o nome “Carnaval” vem de “carne levare”, ou seja, “afastar a carne”). Bem, o que vou dizer é apenas uma suposição, e de qualquer modo uma suposição tendenciosa, mas duvido que um em cada dez foliões que lotam as ruas saiba o que é a Quaresma e para que serve. A Páscoa, entretanto, todos conhecem: é aquele dia mágico em que os coelhos botam ovos. De chocolate.

Se ninguém, com exceção dos cristãos mais empedernidos, jejua na Quaresma, pra que mesmo se comemora o Carnaval? Para extravasar, embriagar-se, ouvir música, gritar, pular, dançar, fazer loucuras e achar sexo fácil? Bem, isso é o que o brasileiro médio faz o ano inteiro.

O motivo, então, de tanta festa, deve ser a comemoração. Comemoração de quê? Estamos comemorando a corrupção institucionalizada, a impunidade crônica, o buraco negro nas contas da Previdência? Comemoramos a violência urbana que nos impede de sentar calmamente num banco de praça? Comemoramos o corte de bilhões de reais do orçamento da saúde, a educação básica que não ensina, as estradas esburacadas, o salário mínimo vergonhoso, o lixo em que se tornou a cultura?

O leitor corajoso que chegou até aqui deve estar me achando mais um chatonildo azedo e rabugento que não come ninguém, mas, acredite: tenho um bom motivo para escrever tudo isso. Eu pretendia, sinceramente, respeitar o Carnaval e os foliões. Mas hoje, uma terça-feira chuvosa, saí sorrateiramente do Ninho da Águia e, com muita cautela, esgueirei-me até o supermercado para comprar um pão. Ao chegar lá, o estabelecimento estava fechado! Fechado! E por quê? Porque é Carnaval! Foi a gota d’água. Tudo bem ficarem saracoteando e suando e se esfregando pelas ruas ao som de música ruim, mas me deixar sem café da manhã por causa disso... é golpe baixo!

14 fevereiro 2007

LINHAS CORTADAS

Deu no Terra: a Câmara dos Deputados decidiu que, a partir de agora, portar e usar celular dentro de presídio é crime. Hediondo.

Como todos sabem, ninguém nesse país entende mais de crime hediondo e de impunidade do que os nossos excelentíssimos deputados, donde conclui-se que isso não vai dar em nada.

Os celulares continuarão entrando nos presídios, os presidiários continuarão usando-os para controlar o tráfico do lado de fora ou para dar golpes à distância, os agentes penitenciários continuarão dizendo que não sabem de nada, os secretários de segurança continuarão fingindo que estão combatendo a criminalidade e os meninos do Morro continuarão entrando no crime ao invés de ter uma vida honesta e passar o resto dos seus dias vendendo rapaduras no semáforo. Os deputados continuarão aprovando leis cada vez mais duras contra o crime organizado e o povo continuará votando nesses mesmos deputados, ou nos seus filhos e netos.

Essa cadeia de acontecimentos só será detida no dia em que as cadeias brasileiras deixarem de ser o que são – pra começar, no dia em que os políticos corruptos forem mandados pra lá. O problema da violência, do crime e da impunidade não foi gerado pela falta de leis, mas sim pelo não cumprimento das existentes.

11 fevereiro 2007

VÊM AÍ MAIS CHALEIRAS ATÔMICAS

Depois dos bilhões já investidos na construção das Usinas Nucleares de Angra 1 e Angra 2 (e na não-construção de Angra 3), o Governo Lula pretende construir mais seis chaleiras aquecidas por combustível radioativo. Deu no Estadão e no Terra.

Convenhamos, uma tremenda burrice. Com um colossal potencial para produção de energia solar e eólica (energias limpas), o nosso governo prefere investir num modelo anacrônico e ultrapassado, com muitos custos desnecessários (o custo monetário elevado, o custo do risco ambiental extremo e o custo dos norte-americanos pegando no nosso pé através da Agência Internacional de Energia Atômica, por causa das nossas ultracentrífugas).

Segundo o Estadão, o governo espera que em 2030 as centrais nucleares estejam produzindo, juntas, 4 mil megawatts de energia. Para efeitos de comparação, a Usina Solar de Gottelborn, na Alemanha, produzirá, sozinha, mais de 8 mil megawatts assim que estiver concluída.

Em tempo: por falar em energia, Bush acaba de lançar o seu "Pró-Álcool". Sim, o soberano do Sacro Império Texano do Petróleo decidiu reduzir o consumo de gasolina investindo numa nova matriz energética: o álcool etanol produzido a partir do milho. E o Brasil, pioneiro na fabricação de álcool há décadas, perdeu a chance de agora se tornar o líder mundial na exportação do novo combustível, depois de sepultar o Pró-Álcool ao deixá-lo nas mãos dos usineiros.

10 fevereiro 2007

COISAS DA VIDA

Da série Resenhas Tardias ou: "Por que diabos eu só fui ler isso agora?"

Abri Matadouro 5, de Kurt Vonnegut, pensando ter em mãos um livro sobre o bombardeio de Dresden. Tendo lido outras obras do autor, eu esperava uma descrição tipicamente vonnegutiana dos horrores da guerra, em especial a destruição da cidade aberta alemã por bombas incendiárias, já no fim da Segunda Guerra Mundial, mas o que encontrei, ao invés disso, foi uma reflexão tipicamente vonnegutiana sobre a vida, a morte, o tempo e também a guerra.

A história de Matadouro 5 é a história de Billy Pilgrim, um ex-quase-assistente-de-capelão-militar que, depois de sobreviver ao inferno da “tempestade ígnea” (um brinde aos puristas!) em Dresden, volta para os EUA e enriquece como optometrista e golpista do baú, sendo de quebra abduzido por sábios e depravados alienígenas do planeta Tralfamador. A história da vida de Billy é contada de um modo inusitado: todos os momentos são narrados ao mesmo tempo, pois Billy “soltou-se no tempo,” adquirindo o maravilhoso dom de viajar pela escala temporal num piscar de olhos.

Vonnegut se usa dos tralfamadorianos para mostrar a Billy (e ao leitor) o seu modo de ver a vida: um mosaico de momentos únicos e infinitos. Para o povo de Tralfamador, cada vivência é eterna como eterno é um inseto aprisionado no âmbar. Nesse sentido, a morte não é uma tragédia, mas uma etapa da vida, incapaz de denegrir os bons momentos vividos.

Billy Pilgrim pode parecer à primeira vista um dos personagens mais estúpidos e sem sal da história da Literatura. Seu modo de viver a vida, entretanto, revela ser bastante tralfamadoriano: ele apenas a vive. Ao longo dos vaivens de Billy pelo tempo, Vonnegut tece uma colcha de retalhos com preciosos e sábios comentários sobre os mais variados temas, sempre com um apuradíssimo senso de humor (negro), em prosa lírica.

Citando o resumo da obra feito pelo próprio autor, o romance “começa assim:
‘Escute:
Billy Pilgrim soltou-se no tempo.
Termina assim:
Piu piu piu?’”

Entre esse início e esse fim, passeios pelo tempo, viagens interestelares, sexo numa jaula de zoológico, acidentes de avião, possíveis enredos para livros de ficção científica, a verdade sobre o fim do universo e o modo como os garimpeiros de Dresden encontraram minas de cadáveres depois que uma chuva de fogo transformou a cidade na superfície da Lua. Coisas da vida.

Ah, e se algum dia vocês passarem por Cody, Wyoming, perguntem por Bob Indômito.

06 fevereiro 2007

BRASÍLIA: A CARA DO BRASIL

Um dos passatempos preferidos de todo brasileiro é ficar imaginando diferentes maneiras de destruir Brasília, ou pelo menos a sua área administrativa. De marretas a bombas atômicas, passando pela chuva de enxofre, cada um acredita ter encontrado o modo mais eficaz - ou o mais divertido - de acabar com aquela Ilha da Fantasia e resolver de vez os problemas do Brasil.

No imaginário popular, a sede da administração federal - em especial, o Congresso Nacional - é um símbolo do que o nosso país tem de pior. Um sindicato do crime oprimindo todo um povo, uma maçã podre contaminando o cesto inteiro, uma corja sem a qual tudo funcionaria: sem eles, a saúde e a educação teriam recursos, os bueiros não entupiriam, o sertão viraria mar e o Roberto Carlos não ficaria ajeitando as meias na grande área durante uma cobrança de falta.

Ao apontar os políticos como culpados pela situação lamentável em que nos encontramos, os acusadores esquecem de fazer a si próprios a seguinte pergunta: de onde vieram esses corruptos? Serão eles alienígenas oriundos do planeta Maracutaia, que um dia aterrisaram nesta terra de ingênuos e implantaram sua cleptocracia? Não terão eles nenhum “parentesco moral” com o povo que representam?

Nem é preciso um grande estudo sociológico (basta observar um pouco as pessoas à nossa volta) para constatar que o político médio brasileiro não é muito diferente do cidadão médio que o elegeu. Brasília é a cara do Brasil. Um povo corrupto só pode gerar um Congresso corrupto. Em maior ou em menor grau, os brasileiros praticam atos de corrupção o tempo todo.

Quem não conhece alguém que usa comprovante de endereço falso para receber benefícios a que não tem direito? Isso é um tipo de corrupção (pra não chamar de “roubo”), mas o senso comum decidiu chamar de “esperteza”. Quem não conhece alguém que põe o nome da mãe como dependente no formulário do Imposto de Renda, para pagar menos à Receita? Corrupção? Não, a culpa é transferida para o Leão do IR, que tem fome demais. O cobrador de ônibus se engana na contagem do troco e dá dinheiro a mais para o passageiro. No Brasil, quem se dá conta do engano do cobrador e lhe devolve o dinheiro é chamado de “otário”. Ficar com esse dinheiro, que depois será descontado do salário do cobrador, não é corrupção: é “senso de oportunidade.” Um microônibus com vários menores de idade volta de um passeio. A Polícia Rodoviária o manda parar, numa verificação de rotina, e constata que aqueles menores não têm o bilhete de autorização assinado pelos pais. Logo, eles não podem seguir viagem. O que acontece? Os policiais e o motorista acertam o preço (duzentos reais) e o micro vai embora numa boa. Corruptos e corruptor? Não. São apenas brasileiros normais removendo um obstáculo legal.

Não inventei nenhum desses casos. Eu vi tudo isso acontecer. No caso do micro, eu estava lá dentro, observando tudo. Imagino que haja outros milhares de exemplos possíveis. No país regido pela Lei de Gérson, inventar maneiras de se dar bem burlando a lei é algo chamado “criatividade.” Claro que todos esses corruptos cotidianos têm desculpas muito boas para justificar os seus atos, mas os grandes corruptos governamentais também devem conhecer umas justificativas excelentes.

Foi Augusto Comte quem disse que “cada povo tem o governo que merece.” No Brasil, a frase cai como uma luva. É por isso que destruir Brasília não resolveria o problema da corrupção. Os políticos corruptos só deixarão de ser regra para se tornar a exceção (e só serão devidamente punidos) quando o “otário” que devolve o troco a mais também deixar de ser exceção para se tornar a regra.

29 dezembro 2006

MINHA VIDA DE MESTRE

(onde são narrados catorze minutos da rotina diária de um trabalhador da Educação)

Entro na sala. Dou o “bom dia” mais cordial de que sou capaz. Ponho o caderno de chamadas na minha mesa e fico de pé, observando – só observando. Mais da metade da turma parece nem ter notado a minha presença. A balbúrdia duraria a manhã inteira, se os mais puxa-sacos não começassem a gritar: “Senta, senta, o Eduardo taí!”.

Quando há condições mínimas de me fazer ouvir, sento pra fazer a chamada. Na minha cadeira desenharam um pênis bem grande, e não posso deixar de notar uns sorrisinhos sacanas em alguns rostos, como se fosse uma grande coisa fazer o professor sentar num cacete.

Sempre fui contra as chamadas, pois acredito que as aulas deveriam ser para quem quisesse aprender, mas quem sou eu pra contrariar a Direção, os pais e a Secretaria de Educação? Alguns nomes já estão nessa mesma lista há vários anos. Muitos vêm à escola só pra ter direito às Bolsas do governo federal, ou para evitar problemas com o Conselho Tutelar. Maldito Conselho Tutelar... Eu queria que um conselheiro tutelar ficasse só uma hora tentando ensinar as Grandes Navegações pra minha sexta série.

Levanto e vou pro quadro. Lá encontro um coração desenhado, enorme, com o texto “Jéssica y Maurício: 100% Amor Eterno”. Amor eterno... Logo a Jéssica, que já amou tanta gente desde o início do trimestre... Mando abrirem os cadernos. Alguns abrem. Tenho que ensinar a essas crianças que os burgueses precisavam de especiarias pra poderem vender carne estragada, aromatizada artificialmente. Eu pretendia também mostrar como desde aquela época os comerciantes fazem de bobos os consumidores; mas não consigo, pois primeiro tenho que mandar o Jéferson parar de chamar o Thiago (com TH) de Dumbo. Ele pára, mas aí tenho que correr pra evitar que a Cíntia e o Jonatan se matem. Que guriazinha insuportável! E o Jonatan é pior ainda. Mando os dois pra Orientação, onde não acontecerá nada com nenhum deles, a menos que desta vez a Orientadora faça algo que não seja passar um sermão inócuo.

Bem, vamos ao conteúdo. Vocês lembram onde os europeus buscavam especiarias? Como ninguém ouviu, peço silêncio e pergunto mais alto. Só o Fernando, o nerd da turma, sabe a resposta. Os demais esqueceram, ou então acham que não precisam aprender essas coisas. E talvez tenham razão. Pra que mesmo eu aprendi isso? No fim das contas, só pra passar no vestibular e depois tentar ensinar esse mesmo conteúdo a pessoas que não querem aprendê-lo.

Olho o relógio, com medo do que vou ver. Faltam trinta e um minutos para o recreio. Como o tempo passa devagar na sexta série! Bem, o jeito é apertar o botão de “Foda-se”, dar as costas para a turma, pegar o giz e escrever, escrever, escrever, até que toque o sinal ou que eu morra de exaustão, o que vier primeiro.