08 setembro 2007

TIO E SOBRINHA

Domingo de chuva, lá estou eu entrando no Zaffari para usufruir das minhas prerrogativas de participante da sociedade de consumo. Ao passar pela porta, ouço uma vozinha que diz:

- Tio, pode comprar alguma coisa pra mim?

Paro e me viro para ver o que minhas retinas tão fatigadas não tinham visto antes, ou, reformulando, o que minhas retinas tão fatigadas tinham visto e decidido ignorar: do lado de fora, uma guriazinha magra e miúda, com a cabeça coberta por um saco plástico para se proteger da chuva. Dou as costas para a minha recém-descoberta sobrinha e entro no templo do consumo. Compro o que tenho que comprar e depois procuro algo para dar pra ela. Tenho geralmente várias desculpas prontas para me recusar a dar esmolas, como "Não se deve dar o peixe, mas ensinar a pescar", "Se eu der, ela ficará dependente", "Ajudar uma só pessoa não vai resolver os problemas do mundo", etc, mas como negar um pouco de comida a uma menininha molhada num dia de frio e chuva?

Penso em comprar pra ela um pacote de Trakinas, mas talvez entupi-la de gordura trans não seja a melhor maneira de combater a sua fome. "Essa menina precisa de proteína", penso eu, que além de sociólogo de bodega virei nutricionista de bodega, e vou ao balcão de comidas prontas lá no fundo. Compro dois espetinhos suculentos e apetitosos, que são embalados numa daquelas bandejinhas de isopor, envoltos em um filme de PVC. Ao sair do supermercado, entrego pra ela os espetinhos e digo:

- E depois de comer, joga o saquinho na lixeira, tá?

Ela faz que sim com a cabeça, eu dou as costas e me vou, pensando que ela certamente vai jogar a embalagem no chão. Depois de atravessar a rua, viro a cabeça para ver o que ela fez e... ela não está comendo, mas guardando a comida em uma sacola, para depois continuar de pé ao lado da porta. Certamente esperando que outro tio lhe dê mais. Certamente guardando para levar para casa, para uma família que a espera ávida por doações dos tios que a sustentam.

É triste viver num país em que muitos e muitos sobrinhos vivem da caridade de tios que sequer sabem os seus nomes. É triste que tantas pessoas precisem de tios para suprir as suas necessidades mais fundamentais. É triste que essa tarefa tenha sido jogada nos ombros dos tios. Eu, com minha concepção pequeno-burguesa de que cada um deveria ter um pai e uma mãe de verdade, pouco ou nada faço para melhorar a vida dos meus muitos sobrinhos espalhados por aí.

Qual será o futuro da minha sobrinha anônima? Terá ela um dia os seus próprios filhos? Ficarão eles nas portas dos supermercados, pedindo comida aos tios que entram? E eu? Que farei para ajudar os meus sobrinhos? Passarei a vida escrevendo textinhos inócuos para sites de meia dúzia de visitantes? Jogarei migalhas às menininhas nos domingos chuvosos? Votarei em candidatos idealistas que depois se revelarão iguais ao resto da escumalha? Cairei na tentação de usar as mazelas humanas como matéria-prima para crônicas que servirão unicamente para nutrir a minha vaidade?

(...)

O Drummond que me perdoe pelo plágio. Mas eta vida besta, meu Deus.

Um comentário:

Letícia Losekann Coelho disse...

É triste...mas este é o Brasil...