29 dezembro 2006

MINHA VIDA DE MESTRE

(onde são narrados catorze minutos da rotina diária de um trabalhador da Educação)

Entro na sala. Dou o “bom dia” mais cordial de que sou capaz. Ponho o caderno de chamadas na minha mesa e fico de pé, observando – só observando. Mais da metade da turma parece nem ter notado a minha presença. A balbúrdia duraria a manhã inteira, se os mais puxa-sacos não começassem a gritar: “Senta, senta, o Eduardo taí!”.

Quando há condições mínimas de me fazer ouvir, sento pra fazer a chamada. Na minha cadeira desenharam um pênis bem grande, e não posso deixar de notar uns sorrisinhos sacanas em alguns rostos, como se fosse uma grande coisa fazer o professor sentar num cacete.

Sempre fui contra as chamadas, pois acredito que as aulas deveriam ser para quem quisesse aprender, mas quem sou eu pra contrariar a Direção, os pais e a Secretaria de Educação? Alguns nomes já estão nessa mesma lista há vários anos. Muitos vêm à escola só pra ter direito às Bolsas do governo federal, ou para evitar problemas com o Conselho Tutelar. Maldito Conselho Tutelar... Eu queria que um conselheiro tutelar ficasse só uma hora tentando ensinar as Grandes Navegações pra minha sexta série.

Levanto e vou pro quadro. Lá encontro um coração desenhado, enorme, com o texto “Jéssica y Maurício: 100% Amor Eterno”. Amor eterno... Logo a Jéssica, que já amou tanta gente desde o início do trimestre... Mando abrirem os cadernos. Alguns abrem. Tenho que ensinar a essas crianças que os burgueses precisavam de especiarias pra poderem vender carne estragada, aromatizada artificialmente. Eu pretendia também mostrar como desde aquela época os comerciantes fazem de bobos os consumidores; mas não consigo, pois primeiro tenho que mandar o Jéferson parar de chamar o Thiago (com TH) de Dumbo. Ele pára, mas aí tenho que correr pra evitar que a Cíntia e o Jonatan se matem. Que guriazinha insuportável! E o Jonatan é pior ainda. Mando os dois pra Orientação, onde não acontecerá nada com nenhum deles, a menos que desta vez a Orientadora faça algo que não seja passar um sermão inócuo.

Bem, vamos ao conteúdo. Vocês lembram onde os europeus buscavam especiarias? Como ninguém ouviu, peço silêncio e pergunto mais alto. Só o Fernando, o nerd da turma, sabe a resposta. Os demais esqueceram, ou então acham que não precisam aprender essas coisas. E talvez tenham razão. Pra que mesmo eu aprendi isso? No fim das contas, só pra passar no vestibular e depois tentar ensinar esse mesmo conteúdo a pessoas que não querem aprendê-lo.

Olho o relógio, com medo do que vou ver. Faltam trinta e um minutos para o recreio. Como o tempo passa devagar na sexta série! Bem, o jeito é apertar o botão de “Foda-se”, dar as costas para a turma, pegar o giz e escrever, escrever, escrever, até que toque o sinal ou que eu morra de exaustão, o que vier primeiro.

9 comentários:

Anônimo disse...

você está na profissão errada!

Redação UBPC disse...

Tem razão, amigo Anônimo. Estou mesmo. Por isso que estou num novo curso, para mudar de profissão em breve.

Obrigado.

Anônimo disse...

muito bom esse!

Anônimo disse...

É. É muito cruel mesmo. Mas as mudanças que conseguimos, são feitas neste clima e com muiiiiiiito esforço. Já pisei em bosta dentro da sala, mas nunca sentei num penis (ri muito, desculpe). Li que você esta mudando de profissão. Que pena...

Anônimo disse...

Ao mestre com carinho...

Anônimo disse...

Eduardo, infelizmente isso acontece aos montes. Estou montando um blog também onde relatarei meu dia-a-dia. Infelizmente vem um zé mané e acha que isso tudo é normal, que voce ta na profissão errada... gostei do botão "f***-**" rs rs rs

Anônimo disse...

Li e fiquei asfixiada...
Seu texto daria uma riquíssima cena de teatro,para ser debatida em cursos de formação de professores. Um pouco de realidade faria bem às cabecinhas sonhadoras,que acreditam na Educação como libertadora das classes e reformadora do mundo.

Anônimo disse...

Amei o texto! nao abandona a profissão! alguns poucos alunos que se interressam, te trazem a recompensa de ser prof!

Anônimo disse...

Desistir? faça isto ñ...vença o desafio.No futuro veras o qt foi vencedor... coragem...bjim